Comentário à Écloga I - Primeira Parte
Comentário à Écloga I - Primeira Parte
Inauguro com este artigo uma série que, possivelmente, se transformará depois em uma seção específica deste site. Minha intenção é apresentar alguns comentários a obras literárias que, talvez, escapem do radar da maioria dos estudantes, mesmo dos mais sérios. Não necessariamente são obras desconhecidas, mas talvez sejam sub-conhecidas: nós as conhecemos, talvez mesmo as tenhamos lido, mas não tivemos a oportunidade (quiçá até o desejo) de deter nosso olhar com um pouco mais de profundidade sobre seu conteúdo.
Antes de enfrentar a tarefa, no entanto, julgo necessário algum esclarecimento com relação à própria idéia de comentário. Pretendo escrever em breve algumas considerações sobre o comentário como gênero textual; entetanto, como meu propósito não é redigir um comentário nos moldes dos clássicos commenta, vou apenas apresentar alguns princípios que terei em mente e espero que estejam presentes também ao leitor ao longo desta série.
Um comentário sobre comentários
Nos áureos tempos em que a verdade importava mais do que a originalidade, grandes autores costumavam escrever comentários a obras influentes. Esses comentários, longe de ser uma espécie de escrita servil ou simplesmente uma “edição crítica”, eram verdadeiras obras em si mesmas, contendo muitas vezes o desenvolvimento de idéias que não se encontram registradas nos escritos totalmente “originais” do comentador.
Essa riqueza dos comentários vem, em parte, de um costume um tanto estranho ao nosso tempo: os comentadores entendiam os textos de maneira ampla e livre, muitas vezes se permitindo longos discursos sobre pontos específicos e pequenos detalhes. Eles não se limitavam a explicar o que o autor do texto comentado pretendia dizer: esclareciam os pressupostos de cada afirmação, delineavam as implicações morais e espirituais, descreviam o contexto histórico… Enfim, criavam uma obra à parte.
Um dado importante (especialmente importante para que meus próprios comentários sejam lidos com mais benevolência) é que muitas vezes os textos eram interpretados em várias camadas de sentido. Ao fazer isso, não era tão sacramente importante como hoje que nos atenhamos ferradamente à intenção real do original. O resultado é que era possível, sem culpa, encontrar temas e idéias que não necessariamente eram intencionais do autor, mas que fazem sentido no cenário da cultura e mesmo em círculos mais amplos da realidade. Um autor de um simples poema de crítica a uma figura política, por exemplo, pode se tornar o pretexto para discussão de princípios morais e da filosofia política dos quais ele jamais se ocupou.
Por isso mesmo, embora, como eu disse, este não seja um comentário do mesmo tipo que tais clássicos, espero alguma compreensão do leitor e uma certa condescendência com as divagações que surgirem ao longo da série.
As Éclogas de Virgílio
Decidi começar com as Éclogas de Virgílio pelo simples motivo de que é delas que, atualmente, me ocupo em uma seção de meus estudos. Sim, esta série é uma espécie de experimento pessoal.
Muitas vezes e de muitas maneiras autores eruditos criaram introduções às Éclogas (ou Bucólicas), explicando com muita riqueza o gênero, o lugar de Virgílio na história da Literatura, seu cenário histórico et caetera. Vamos fazer algo mais simples e apresentar brevemente a figura do autor e do que se trata a obra.
É bem provável que o leitor já tenha ouvido falar de Virgílio, ao menos por conta da sua principal obra, a Eneida. Esta obra, um épico que reconta a história do herói Enéas, sua fuga da vencida Tróia e suas aventuras até o estabelecimento na Itália. Antes de embarcar na longa viagem de produção da Eneida, Virgílio passou boa parte de sua vida adulta na Ilha de Capri, onde se dedicou à escrita das Éclogas, ou Bucólicas.
As Éclogas são uma coleção de poemas que retratam temas da vida rural, da natureza e da vida dos pastores e habitantes do campo. Os versos contém diálogos entre personagens sobre diversos assuntos, desde questões práticas da vida campestre e seus amores até assuntos morais e políticos. Se à primeira vista parecem apenas descrever belas imagens e sentimentos, em outra perspectiva os poemas servem de suporte para reflexões variadas.
A Écloga I
O primeiro poema é um diálogo entre dois pastores, Tityrus e Meliboeus. Como veremos no decorrer dos próximos posts, os dois estão em situação diametralmente diferente: Tityrus descansa, tranquilo, à sombra de uma árvore e toca sua flauta pastoril, enquanto Meliboeus se prepara para partir do campo, forçado a abandonar seu lar e entregar suas terras.
O que aconteceu a Meliboeus? Por que ele precisa abandonar sua terra pátria? A resposta não está no poema mesmo, mas na vida de Virgílio, e teremos a oportunidade de adentrar nesse tema muito em breve. Por ora, chamo a atenção para o que o comentador Maurus Servius Honoratus assinala a respeito de Tityrus:
“…hoc loco Tityri sub persona Vergilium debemus accipere; non tamen ubique, sed tantum ubi exigit ratio.""
O que Servius afirma nessa passagem é que devemos entender que Tityrus é uma representação do próprio Virgílio, ainda que não convenha lermos o poema inteiro fazendo essa “tradução”, senão apenas quando for necessário à compreensão do texto. Temos aqui uma pista: há um acontecimento real e histórico que causa a saída do pobre Meliboeus, enquanto que Tityrus - e, portanto, o autor - permanece em sua tranquilidade.
No próximo artigo da série, teremos oportunidade de conversar um pouco sobre esse episódio. Por ora, esta primeira parte já serviu seu propósito de introdução.